quinta-feira, 24 de junho de 2010

Cartas

=Ele=

- Pega.

- ...

- São.

- ...

- Não quero. Vou acabar lendo, e não quero.

- ...

- Já te expliquei. Não quero ficar com lembranças tuas.

- ...

- Olha... Foi tu quem decidiu assim. Tu quis terminar, não eu. Eu não quero ficar com elas, pra não ficar remoendo. Tu me deve isso.

- ...

- Olha, se tu não pegar, eu vou jogar fora. Tu quem sabe.

- ...

- Vou jogar fora.

Ainda fiquei com as cartas estendidas pra ela por um tempo. Ela continuou com os braços cruzados, olhando pro chão.
Não tinha nada mais pra dizer. Fui embora.
Andei um pouco, e e enfiei a mão no bolso pra pegar os cigarros. Achei as cartas. Os ciagrros tem um gatihlo: lixeiras. Eu uso fósforos, e detesto jogar lixo no chão, então sempre risco um fosforo perto de uma lixeira. E ali estava uma lixeira, e eu com as cartas na mão. Bom, mas eu ainda queria fumar. Assim, risquei um fósforo, e acendi o cigarro. Meu nome no início de uma folha me fez ter uma dessas reações incontroláveis. Acabei abrindo a primeira carta. Era do início do namoro. Não a primeira, mas uma das primeiras. Ali estavam elas. As cartas, com suas frases, palavras, letras. Tudo indicando que a gente ia ficar realmente junto. Casar, ter filhos, essas coisas. Nada disso estava escrito, mas estava subentendido.
As cartas continuaram vindo. Era uma ação que não podia ser retida. Uma vez que comecei uma, teria que ler todas.
Mais um cigarro.
Aquelas palavras alí, tão cinceras, agora pareciam uma mentira sem nexo. Faziam parte de alguém que não existia mais, e que realmente me amava, numa vida passada, num outro mundo, outra realidade.
Amava.
Como é que pode amor acabar? Amor devia ser infinito. Sei lá... Algo naquilo tudo era tão errado. Algo naquelas cartas era tão sem sentido, tão absurdo....Como é que aquilo tudo, todas aquelas juras tão metodicamente escritas nas entrelinhas, não realmente escritas mas presentes, podiam não ser mais verdade?
Nessa altura, eu queimava. Meu rosto era uma fogueira, que tiravca o calor das mãos, frias e insensíveis, manuseando o papel pautado.
Risquei um fósforo, pra me aquecer, acho, e acendi mais um cigarro.
As últimas cartas. Duas, dobradas juntas, com um clipe verde pra que não se separassem . Duas. Havia muita coisa alí pra ser resumida à só uma folha pautada. Precisavamos de mais, lembro bem. Eu precisava ler mais, e ela parecia entender, e escrevia mais. As últimas duas também eram gêmeas presas por um clipe verde, mais escuro que o primeiro. Escritas até a última linha. Tanto à ser dito. Tanto desejo em ler.
Que letras lindas. Feitas cada uma como um pequeno desenho. Os detalhes, a bolinha perfeitamente redonda encimando cada "i". Cada "a" com uma minúscula fresta, uma imperfeição premeditada.
Finalmente, o fim. A primeira carta. Um pouco indecisa nas escolhas, parece, depois de todas as outras frases tão firmes, tão desenvoltas. Foi a primeira carta, a que iniciu aquela torrente bem-vinda de manuscritosque eu adorava ler, e me envergonhava de responder sem tanta desenvoltura. Era quase um diálogo. A cada carta que eu lí, ali, parado em frente daquela lixeira, eu quase lembrava literalmente do que tinha escrito pra ela, quando recebi cada uma daquelas cartas, na esperança que ela me presenteasse com outro pequeno tesouro de papel e tinta. Eram, pra mim, a parte mais bela, a mais importante de tudo o que tinhamos. E justo por isso, acho, era agora o que mais me deixava com aquele gosto de ressentimento. Me sentia como um tolo, que se deixa enfeitiçar por belas palavras, e que quando vê a magica desfeita, toma consciência da própria tolice.
Risco outro fósforo, acendo outro cigarro.
As cartas pesam nas minhas mãos geladas. Deixo a fumaça do fósforo desvanecer por completo, na lixeira, e então pouso as cartas sobre ele.
Sigo subindo a rua, para o lado sul, e deixo pra sempre aquele pequeno encanto para trás.




=Ela=

- ...

- Que? essas são as cartas que eu te escrevi?

- ...

- Porque... Não, eu escrevi pra ti! Tu fica com elas!

- ...

- Como assim?

- ...

- Ai, não faz isso...

- ...

- Não! Não vou ficar com elas! Eu escrevi pra ti! São tuas!

- ...

- Faz o que quiser. Eu escrevi pra ti. São tuas.

- ...

Ele não diz mais nada. Se vira e vai embora. Eu tenho o ímpeto de dizer algo, mas não sei o que, então fico calada. Ele some atrás do prédio tão rápido que não seguro a última imagem na memória.
Volto pra dentro, vou até o elevador, abro a porta em câmera lenta e aperto o sete. O círculo em volta do número se ilumina, e a placa de números vermelhos luminosos indica os andares mudando, devagar. Um leve solavanco, e o elevador me deixa na frente da minha porta. Pego o molho de chaves, e abro. Fecho, e tranco. Tiro o molho da porta e coloco no chaveiro sobre a pia. Observo por um momento as chaves alí, e me dou conta que tenho as duas cópias, uma no bolso, recem devolvida. O último resquicio de relacionamento. Pego o molho do chaveiro, e volto a colocar a chave na fechadura. Meu primeiro ato oficial de solidão.
vou pro quarto, colocar a cópia no meu bolso junto com as bijuterias. Acho que é o melhor lugar provisório pra ela.
quando chego no quarto, pela janela aberta, lá longe, ele está parado com as cartas na mão.
Lembro que quando começamos a namorar, eu subia correndo pra esperar ele passar por alí, ao lado de um terreno baldio, duas quadras depois do prédio, enquanto ele subia a ladeira de volta pro lado sul. Ele subia devagar, como se puxasse alguma coisa por uma corda, e geralmente esperava até chegar na esquina pra acender um cigarro. Nunca olhou pra cá. Como é desligado... Nunca se deu conta que podia me olhar na janela, daquela esquina, e eu ficava sempre aqui esperando um aceno.
Agora não espero um aceno. Nem sei bem se espero alguma coisa. Só fico alí, um segundo perdido no tempo, observando ele atravez da janela aberta,do o utro lado do terreno baldio, segurando as cartas. Um calor súbito me toma, e não posso não chorar. Dou um passo pro lado e me escoro na parede, ao lado da janela, pra ele não me ver chorando. Levo um minuto pra voltar à mim e lembrar que ele nunca me viu aqui, não seria hoje, seria? Espio pelo canto da janela. Ele ainda está lá, parado. Fumando um cigarro e lendo as cartas que eu escrevi alí mesmo, na frente daquela janela. Eu sempre ouvi que o lugar onde a gente trabalha, ou estuda, com mais frequência, tem que ficar de frente pra uma janela, pra estimular a criatividade. A vista daqui não era bonita, com uns prédios velhos, um telhados sujos, o terreno baldio e a esquina com ruas de paralelepípedos por onde passam os ônibus. Apesar da vista não ser ideal, eu decidi colocar a escrivaninha ali.
Agora é o meu observatório, de onde vejo ele lendo as cartas. Muito longe pra conseguir perceber o rosto. Só sei que está fumando, e que está lendo.
qual delas ele está lendo agora? Será que estavam na ordem? Aquela pode ser a terceira ou quarta. O que tinha nela? Escrevi todas aqui, nessa escrivaninha. Tinha o ímpeto de escrever, mas depois da primeira frase, parecia que tudo o que tinha pensado se perdia, e eu me esforçava pra escrever, achar as palavras certas, construir cada frase. Mas se era um pequeno esforço, era um prazer sem igual terminar cada carta. Eu sabia que ele ia gostar de ler. Ele sempre comentava, fazia mil elogios! Era tão bom escrever, porque eu sabia que ele ia gostar!Os elogios eram tão vivos, ele adorava tanto de cada uma, que eu acava sempre encontrando sobre o que escrever! As vezes até guardava assuntos só pra poder começar uma carta!
E agora ele não quer mais as cartas! Será que ele mentiu? Será que os comentários eram só me me agradar?
Não, não pode! Ele escrevia cartas de resposta, curtinhas, mas tão divertidas!
E agora está ali, lendo todas elas. Mas será que ele vai jogar fora? Ele faria isso? Bom, a gente terminou. ele tem o direito, as cartas são dele. Mas ele não pode ser tão insensível! Se bem que ele me disse que não queria ficar com elas. Eu até entendo. Mas escrevi com tanto carinho.
Ele dobra as cartas, cuidadosamente, e coloca no bolso da jaqueta. Sempre teve orgulho dos bolsos grandes dos casacos. Cabiam até livros dentro!
Ele acende um cigarro, abana o fósforo, e fica olhando pro nada, por um tempo. Depois saca as cartas do bolso, e hesita, mas caba colocando elas no lixo, com um certo cuidado.
As lagrimas voltam.
Ele segue subindo a rua. Ele vai voltar e pegar as cartas, eu sei que vai!
Mas não volta. Ele sobe a rua, até sumir atrás da próxima quadra, com um rastro de fumaça como última lembrança.
E lá estão as cartas, na lixeira.
As cartas que eu escrevi com tanto gosto. que me deram tanto prazer em escrever. No lixo.
Tenho um impulso de decer e pegar as cartas. Resgatar daquele fim tão impróprio. queimar, ao menos.
Mas é só um impulso.
As lagrimas secam, enquanto o fim de tarde vai escurecendo a rua.
Fechar as janelas, pra não entrar inseto. Fechar as cortinas, pra niguém olhar aqui pra dentro.
Vou tomar um banho, e deixo as cartas que escrevi morrerem lentamente, repousando naquela cova tão rasa.
Minha primeira decisão oficial de solidão.




=As cartas=

E findou-se assim. Fomos deixadas ao relento, sobre o calor vestiginal de um fósforo, ao sabor do vento, pra sermos recolhidas por catadores de lixo, ou nos juntarmos à tantos outros restos descartados de tantos outros casais.
Ao menos, ficou o carinho das dobras cuidadosas, a última homenagem ao mensageiro dedicado.
Foi tudo tão estranho. Começamos como uma única missiva. Uma série de linhas mais ou menos interligadas, escritas com excitação lidas e relidas varias vezes com afeto, tantas vezes. Depois, vieram outras folhas, criando um calhamaço relativamente volumoso. Todos lidos cuidadosamente, com muita curiosidade, à principio, depois com mais afeto do que tudo.
Cada uma escrita num fim de tarde particular, todas minuciosamente dobradas e colocadas numa gaveta, esperando excitadas por trocar de mãos. O momento em que eramos de duas pessoas, ao mesmo tempo, era breve, porem caloroso, festivo. Depois eramos desdobradas, lidas à cama, sempre sob uma luz de cabeceira focada, como a de um artista sob as luzes de um teatro majestoso. Havia, em cada leitura, um sorriso. As vezes era tímido, algo apreensivo, vindo quase sem querer. Depois, a cada nova leitura, ele se tornava mais franco, mais reluzente. As vezes, diante da necessária concentração, ele quase sumia, para voltar em seguida, graças à uma frase mais espirituosa. A apreensão e a curiosidade davam lugar ao afeto, eventualmente, e varias vezes presenciamos suspiros e juras solitárias de amor e ternura.
Do ato da criação até o momento em que nossos mistérios eram finalmente desfraldados diante de olhos ávidos, sempre haviam os sorrisos.
Mas alguma coisa aconteceu.
Em um dado momento, aquele ritual noturno de leitura, de tirar-nos do nosso sono para uma visita furtiva, escasseou. Na verdade, cessou por completo. Durante várias e várias noites, esperamos, esperamos, e não fomos tocadas.
Então, aconteceu.
Numa tarde ensolarada, fomos abruptamente retiradas de nosso descanso, e abertas por mãos conhecidas, mas cujo toque suave era agora algo bruto, sem o carinho que nos era tão familiar.
Essas mesmas mãos nos abriram, com essa mesma brutalidade, sob olhos cerrados. Não havia sorrisos, pela primeira vez. E nem houve o tempo de sermos analizadas. Apesnas um ríspido passar de olhos, e como se fossemos culpadas de algum crime, fomos enfiadas num bolso Áspero, dividindo espaço com um maço de papael recheado de algo mal-cheiroso e uma pequena ciaixa de madeira e papelão que ficava irritamentemente chacoalhando a cada movimento do bolso.
Diferente das viagens anteriores, em que eramos carinhosamente colocadas em um aconchegante bolso calroso, desta vez fomos amassadas e expremidas varias vezes, durante o trajeto que faziamos, numa viagem em cunjunto, pela primneira vez.
As vezes, aquelas mãos familiares, mas agora tão desconhecidas, retiravam o maço fedorento e a caixinha irritante do bolso, e quando tornava à colocá-los ao nosso lado, vinham novos amassões.
Finalmente, houve uma pausa. Tudo parou. O movimento cessou quase por completo, e a mão tirânica não voltou à nós por algum tempo.
Finalmente, fomos retiradas, bruscamente, de dentro do bolso.
Coisa estranha.
estavamos alí, novamente, diante daquelas mesmas mãos que nos haviam escrito e manuseado com tanto carinho, e agora, ao contrário das outras vezes, quando eramos folhas solitárias, eramos manuseadas como um fardo por uma mão, e rejeitadas como um filho bastardo pela outra.
Alí fora, ao sol, eramos seguradas com força, apontadas em direção daquela que nos concebeu quase como uma arma. Eramos uma ameaça. E ela não nos queria. Nenhum deles nosa queria.
Subitamente, voltamos ao bolso.
Voltamos à convivência com o maço e a caixa.
Voltamos a nos mover.
Finalmente, paramos.
Fomos retirados do bolso mais uma vez, ainda sob o sol, e, lentamente, fomos desdobradas, e relidas.
Desta vez, porem, apesar da atenção à cada palavra, cada letra, não houve sorrisos. Os olhos ainda nos olhavam semi-cerrados.
diante de nós, uma folha enrolada foi acesa, e tememos que aquele fosse também nosso fim. Mas não. Quando aquela primeira folha foi quase completamente consumida, veio outra, e mais uma, todas queimadas quase na sua totalidade. Enquanto isso, eramos examinadas. Não propriamente lidas, mas minuciosamente estudadas.
No lugar de olhos cálidos, hoveram globos úmidos, a face vermelha, os lábios apertando impiedosamente o rolo de papel fedorento que queimava, no lugar de lábios curvados num sorriso, as vezes deixando mostrar os dentes.
E finalmente, fomos dobradas, hesitantemente. E então, deixamos qualquer contato caloroso de qualquer mão que tivesse nos tocado antes, para sermos deixadas alí, sobre uma pilha de outros dejetos.
De juras e promessas, de missivas de ternura e afeto, nos tornamos apenas papel e tinta, apenas restos.
Esse foi o fim de tudo.
Cartas jogadas no lixo.
Promessas descartadas.
Carinhos esquecidos.
Amor findo.